Atraso na entrega de imóvel: responsabilidade da construtora e direitos do consumidor

1. Contextualização e relevância prática

A aquisição de imóvel na planta é uma das formas mais comuns de acesso à moradia no Brasil, especialmente por meio de programas habitacionais como o Minha Casa Minha Vida e o Casa Verde e Amarela. Contudo, o atraso na entrega das unidades tem gerado uma série de litígios judiciais, revelando a necessidade de análise jurídica aprofundada sobre os direitos do comprador e as responsabilidades da construtora.

O presente artigo examina os efeitos jurídicos do atraso na entrega do imóvel, abordando os limites contratuais, a incidência de encargos como juros de obra, IPTU e taxas condominiais, e a possibilidade de indenização por danos materiais e morais. A análise será feita à luz da legislação vigente e da jurisprudência consolidada, com destaque para o Tema 996 do Superior Tribunal de Justiça e decisões recentes do Tribunal de Justiça do Paraná.

2. Fundamentos legais aplicáveis

A relação entre comprador e construtora é regida por um conjunto de normas que visam proteger o consumidor e garantir o equilíbrio contratual:

  • Código Civil (Lei nº 10.406/2002):

    • Art. 389: inadimplemento gera obrigação de indenizar perdas e danos.

    • Art. 395: mora do devedor implica responsabilidade por perdas e danos.

    • Art. 618: responsabilidade do empreiteiro por vícios na obra.

  • Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990):

    • Art. 6º, VI: direito à reparação de danos materiais e morais.

    • Art. 47: cláusulas ambíguas devem ser interpretadas em favor do consumidor.

    • Art. 51, IV e §1º: nulidade de cláusulas que imponham obrigações desproporcionais.

  • Constituição Federal:

    • Art. 5º, XXXII: o Estado promoverá a defesa do consumidor.

    • Art. 6º: direito à moradia como direito social.

  • Lei nº 4.591/1964 (Condomínios e Incorporações):

    • Art. 43: responsabilidade do incorporador até a entrega efetiva da unidade.

3. Cláusulas contratuais, limites e obrigações

É comum que os contratos de promessa de compra e venda prevejam um prazo de entrega com cláusula de tolerância de até 180 dias. No entanto, a jurisprudência exige que essa cláusula seja clara e objetiva, não podendo ser utilizada para justificar atrasos indefinidos ou abusivos.

A entrega do imóvel somente se consuma com a entrega das chaves, e não com a expedição do “habite-se”. Essa distinção é fundamental para definir o início da posse e, consequentemente, a responsabilidade pelo pagamento de tributos e encargos.

Além disso, a cobrança de juros de obra após o prazo contratual é considerada abusiva. Esses encargos, embora cobrados pela instituição financeira, decorrem da liberação gradual dos recursos à construtora e não podem ser transferidos ao comprador durante o período de mora.

4. Jurisprudência atualizada e teses firmadas

A jurisprudência do Tribunal de Justiça do Paraná tem se mostrado firme e reiterada no reconhecimento da responsabilidade da construtora pelo atraso na entrega de imóveis adquiridos na planta. Em diversas decisões, o TJPR entendeu que a entrega do imóvel somente se consuma com a entrega das chaves ao comprador, e não com a mera expedição do “habite-se”. Esse entendimento é fundamental, pois afasta a tese recorrente das incorporadoras que tentam antecipar a data de entrega para evitar a caracterização da mora. A expedição do habite-se é um ato administrativo que autoriza o uso da edificação, mas não transfere a posse direta ao comprador. Assim, enquanto não houver entrega das chaves, o comprador não pode usufruir do imóvel, o que justifica a responsabilização da construtora por lucros cessantes, tributos e encargos condominiais.

Em casos concretos, o TJPR reconheceu que cláusulas contratuais ambíguas ou contraditórias quanto ao prazo de entrega devem ser interpretadas de forma mais favorável ao consumidor, conforme determina o artigo 47 do Código de Defesa do Consumidor. Quando o contrato prevê um prazo de entrega vinculado à assinatura de contrato com agente financiador, sem data certa, essa indefinição não pode prejudicar o comprador. O tribunal tem afastado a tese de novação contratual, mesmo quando há posterior assinatura de contrato com instituição financeira, por entender que não se configura animus novandi, especialmente em contratos de adesão firmados por consumidores hipossuficientes.

Outro ponto recorrente na jurisprudência paranaense é a condenação da construtora ao ressarcimento dos valores pagos a título de juros de obra após o prazo contratual. Embora esses encargos sejam cobrados pela instituição financeira, o TJPR tem reconhecido que eles decorrem da liberação gradual dos recursos à construtora e, portanto, não podem ser transferidos ao comprador durante o período de mora. A continuidade da cobrança após o prazo de entrega configura prática abusiva, violando os princípios da boa-fé e do equilíbrio contratual. O tribunal tem aplicado diretamente a tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça no Tema 996, segundo a qual é ilícita a cobrança de juros de obra após o prazo ajustado para entrega das chaves, incluído o período de tolerância.

Além disso, o TJPR tem determinado a substituição do índice INCC pelo IPCA como forma de correção monetária do saldo devedor durante o período de mora. O entendimento é que o INCC, por refletir o custo da construção civil, torna-se inadequado após o prazo contratual, pois o imóvel já deveria estar concluído. A aplicação do IPCA, índice geral de preços ao consumidor, é mais justa e equitativa, evitando que o comprador arque com correções que beneficiam exclusivamente o fornecedor. Essa substituição é uma forma de reequilibrar a relação contratual, conforme os princípios do Código de Defesa do Consumidor e da função social do contrato.

No que diz respeito aos encargos como IPTU e taxas condominiais, o TJPR tem reiterado que a responsabilidade pelo pagamento é da construtora até a efetiva entrega das chaves. O tribunal rejeita a alegação de que tais encargos são de natureza propter rem e, portanto, de responsabilidade do comprador desde a expedição do habite-se. A jurisprudência é clara ao afirmar que, enquanto não houver imissão na posse, o comprador não pode ser responsabilizado por tributos e despesas que decorrem do uso do imóvel. Essa interpretação está alinhada com a proteção do consumidor e com o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa.

Por fim, o TJPR tem reconhecido que o atraso na entrega do imóvel gera prejuízos materiais presumidos, como o pagamento de aluguel, IPTU e taxas condominiais, além de danos morais quando a frustração da expectativa ultrapassa os meros aborrecimentos. Em decisões recentes, o tribunal entendeu que o inadimplemento contratual prolongado e injustificado configura conduta antijurídica que enseja reparação extrapatrimonial, especialmente quando o comprador é impedido de fixar residência ou realizar planos pessoais em razão do atraso. A indenização por danos morais tem sido fixada com base na razoabilidade e na extensão do dano, considerando o impacto direto na vida do consumidor.

Esse conjunto de decisões revela uma jurisprudência consolidada e protetiva, que reconhece a vulnerabilidade do comprador e impõe à construtora o dever de cumprir rigorosamente os prazos contratuais, responder pelos encargos indevidos e reparar os danos causados pelo atraso na entrega do imóvel.

5. Efeitos práticos e recomendações

Para consumidores:

  • Exigir cláusulas claras sobre prazo de entrega.

  • Documentar todas as comunicações com a construtora.

  • Buscar orientação jurídica ao identificar atraso ou cobrança indevida.

  • Pleitear indenização por lucros cessantes e danos morais, quando aplicável.

Para construtoras:

  • Cumprir rigorosamente os prazos contratuais.

  • Evitar cláusulas ambíguas ou contraditórias.

  • Assumir os encargos até a entrega efetiva do imóvel.

  • Manter transparência na comunicação com os compradores.

6. Dúvidas frequentes

a) O que caracteriza a entrega do imóvel? A entrega se consuma com a entrega das chaves e imissão na posse, não com o habite-se.

b) Posso ser cobrado por IPTU e condomínio antes de receber as chaves? Não. A responsabilidade é da construtora até a entrega efetiva.

c) É legal cobrar juros de obra após o prazo contratual? Não. O STJ considera essa cobrança abusiva (Tema 996).

d) Tenho direito a indenização se o imóvel atrasar? Sim. Você pode pleitear lucros cessantes e, em casos graves, danos morais.

e) O índice INCC pode ser substituído? Sim. Durante a mora, deve ser substituído pelo IPCA, conforme jurisprudência.

Considerações finais

O atraso na entrega de imóveis é uma realidade que exige atenção jurídica especializada. A legislação brasileira e a jurisprudência atual oferecem instrumentos eficazes para proteger o consumidor e responsabilizar a construtora pelos prejuízos causados.

A atuação preventiva, com contratos bem redigidos e cláusulas equilibradas, é essencial. Em caso de descumprimento, o consumidor deve buscar reparação judicial, com base em precedentes consolidados e normas protetivas.

A entrega das chaves é o marco jurídico da posse, e somente a partir dela podem ser transferidas obrigações como IPTU, condomínio e manutenção. A cobrança de encargos antes disso, bem como a tentativa de justificar atrasos com cláusulas contraditórias, configura prática abusiva e deve ser combatida com firmeza.

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Referências bibliográficas 

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. 

BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. 

BRASIL. Código de Defesa do Consumidor. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. 

BRASIL. Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964. 

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. REsp 1.729.593/SP. Tema 996. 

TJPR. Apelação Cível nº 0001118-78.2024.8.16.0024. 

TJPR. Apelação Cível nº 0055622-26.2012.8.16.0001. 

TJPR. Recurso Inominado nº 0007793-22.2022.8.16.0026.

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